Aventuras gastronomicas
O que nos leva é uma impressão forte de que só na África - berço da humanidade, financiadora de muito do progresso dos outros continentes - só lá veremos a real dimensão da necessidade de respeito ao ser humano. (Verdade? Mentira? Piegas? Comenta, vai!)
Na epoca de maior repressao, a policia do apartheid na Africa do Sul usava na patrulha das "townships" - guetos criados pelo regime de segregacao racial - um veiculo blindado chamado "casspir", uma mistura de caminhao com tanque de guerra. Um deles eh atracao no Museu do Apartheid, e esta la como passado, resgate da memoria. Nem tentamos, porque nao ha como explicar para eles, que um carro muito semelhante, apelidado "caveirao", eh utilizado da mesma maneira nas favelas do Rio. Assim como os casspir, eh um carro de seguranca do aparato policial.
"Quando era estudante, aprendi que a Africa do Sul era um lugar onde o Estado de Direito vigorava para todos, independentemente de condicao social. Eu acreditava e inicialmente baseei minha vida nisso. Mas minha carreira como advogado e ativista tirou a venda dos meus olhos e vi que havia uma grande diferenca entre o que aprendi em aula e o que aprendi nos tribunais. E entao passei da ideia idealistica da lei como instrumento de justica para uma visao da lei como ferramenta usada pela classe dominante para moldar a sociedade como lhe convem." (N. Mandela, "Long Walk to Freedom", autobiografia, trad. livre)
Titulo politicamente incorretissimo, mas fazer o que? Ontem pegamos o carro e fomos para a parte riquinha da cidade. Queriamos ter uma noite nao-turistica. Estaciona o carro, pipoca, cinema, jantar. Arcadia eh o bairro das embaixadas e residencias de classe media alta. E aih reencontramos os brancos. Todos concentradinhos naqueles metros quadrados. Poucos negros. A maioria deles, flanelinha...
Mudanca contingencial de planos: nao vamos mais a Victoria Falls, la no alto do Zimbabue e fronteira com Botsuana. Eh que nao temos visto para Botsuana (diziam que se podia obter na fronteira; aqui descobrimos que nao) e com isso a viagem seria de 900km ida e volta pela mesma estrada. Entre o turismo - apenas - em Victoria e o passeio com historia e gente de Pretoria e Joanesburgo, decidimos nos dar mais tempo para estas duas cidades da Africa do Sul. Na estrada de volta, mais policiais denegrindo a imagem do Zimbabue, coitado, jah nao fosse um pais sofrido. No final nao tivemos nenhum problema, mas que eh chato procurarem diamante no carro da gente toda hora, la isso eh...
"Ele estah no poder ha 27 anos", nos contava uma senhora que trabalha num hotel praticamente as moscas em Birchenough Bridge. Queriamos saber mais daquele cuja foto eh exposta em todos os estabelecimentos comerciais do pais. "Ele pinta o cabelo, eh bem mais velho do que aparenta" acrescenta a senhora. " Deixar o poder? Soh quando morrer", diz, emendando uma gargalhada. Ela nao votou nele. Nao estava entre os 100% de eleitores do Zimbabue que votaram em Robert Mugabe nas ultimas "eleicoes". O principal opositor politico, diz ela, eh branco, um dos menos de 3% que habitam o pais. " E ele odeia branco", acrescenta a nossa entrevistada em voz baixa.
As coisas no Zimbabwe comecaram tao complicadas que seria mais facil a Julia saber mesmo responder como anda o Ronaldinho - pergunta feita, alias, por 11 dentre 10 cidadaos africanos, tao-logo ficam sabendo que somos brasileiros. Na fronteira, mais formularios que num balcao do INSS. Casa de cambio, banco, centro de informacoes, tudo fecha cedo. A taxa de cambio oficial, se a usassemos, faria o hotel custar 250 dolares/dia. O teatro ao lado - o unico aqui de Mutare - fechou para reformas (precisamos voltar em marco). O cinema passa dois filmes holywoodianos de sessao da tarde. Toalha, ahnn, tem... so que nao secaram ainda, entende? Precisamos trocar dolares urgentemente (senao, nem jantar sairia barato). Aih vai Julia, carioca, 30 anos de praia, pergunta daqui, explica dali... Lembram o Brasil da decada de 80, em que se fazia compras no dia do pagamento e muita gente estocava em casa sal e acucar porque o preco de repente estourava? A mesma pessoa que estava dando informacao na rua pediu que o acompanhassemos, fomos na empresa dele ali perto e, num piscar de olhos, 100 dolares americanos sao 280 mil dolares zimbabuenses (seriam apenas 25 mil se fosse no cambio oficial). Incluida no preco, uma explicacao de pratica economica em tempos de crise, como o fato de estarem todos esperando o proximo anuncio de pacote economico (havera uma Zelia, um Bresser, um Funaro zimbabuense?...) A despeito disso tudo, continuamos, como acontecia em Mocambique, em terra de gente simpatica e disposta a ajudar. E a sensacao de inseguranca ainda estamos guardando para usar so na volta ao Brasil...
Volta e meia alguma coisa mostra que Mocambique parece o Brasil uns quarenta, cinquenta anos atras. Num banco em Tofo, onde fomos trocar dinheiro, assim como em quase todos os lugares, formularios, muitos formularios. Na parede do banco, um papel em letras "antigas" dizendo a razao social, quantos empregados, horario de funcionamento... tudo muito semelhante aos antigos formularios-padrao mandados fazer pelo Ministro do Trabalho naquele Brasil antigo. Por onde se passa, muita gente humilde, simpatica, disposta a ajudar. Aquele Brasil.
Hoje foi o primeiro banho no Oceano Índico! Moçambique tambem parece ter Nordeste brasileiro. Pelos sorrisos, pela calma das pessoas, pela descontração. Fomos muito bem recebidos pela Debora, que nos deu literalmente casa, comida e roupa lavada.
Tantos brasileiros ilegais em paises mais chiques, mas foi isso que aconteceu com a gente. Chegamos no posto de controle e bum! Precisava de visto. Erro de informacao no guia de viagem e nos pensando mais uma vez em ser mandados de volta pra Africa do Sul. Mas eu fiz cara de choro e a mulher que tava atendendo pediu para esperar. Surgiu a esperanca. Ela carimbou mais uns passaportes de sul-africanos que entravam, pegou os nossos de volta, folheou-os nervosamente e mandou o que nos nao esperavamos: "Ok. Vou deixar voces entrarem, mas nao posso carimbar. Vcs tem que ir a Mbabane (capital) resolver isso. Nao deixem que ninguem veja os passaportes".
Durban eh a cidade com a maior concentracao de indianos - fora da India, claro... Foi aqui que nos instalamos no Hotel Tudor, o Edificio Yacobian da Africa do Sul (referencia a um edificio no Cairo que de tanta historia e gente rendeu um livro e um filme). Estranho o hotel, mas maravilhosa a cidade. Dois dias aqui ficaram pouco para as possibilidades que fomos vendo. Um exemplo, Victoria Market, uma especie de mercado publico indiano. Nao resistimos e tiramos foto ate - talvez principalmente - das comidas e dos temperos. Tudo muito colorido, as pessoas todas simpaticas. Um detalhe terrivel: a Julia foi ao banheiro mas tinha fila, entao ficou esperando; assim que viram - negras e indianas, velhinha inclusive - que havia uma branca na fila, cederam a vez, e ela precisou explicar que nao, nao havia necessidade da preferencia... Surpresa agradabilissima: Bat Centre, um centro de cultura com bar e vista pro Oceano Indico. Chegamos a tempo de acompanhar uma roda de poesia: pelo menos 4 talentos ali, escondidos de nos que nos escondemos tambem e achamos que estamos no centro do mundo. Muito ritmo na mistura do ingles com o zulu. Para fechar a mistura, tiveram de ouvir o som de um soneto em portugues - foi o dia em que Mario Quintana foi pouco entendido mas muito ouvido em Durban.
Joanesburgo ate que nos recebeu bem. Como diria o Lula, "nem parece Africa". Tomamos um cafe para despertar e o garcon educadamente se despediu perguntando como se dizia "obrigado" em portugues. Se esforcou para guardar a palavra e dize-la ao Gian, que voltava `a mesa minutos depois. Looonga estrada ate Fouriesbug. Com alguns momentos engracados. Destaque para as pancadas que o Gian dava na porta do carro procurando o cambio, que fica do outro lado nos carros de ca - assim como o volante etc, etc... Paramos para tomar uma agua numa cidade minima e uma senhora nos convidou para passar a noite na casa dela, "jantar, pelo menos", tao impressionada: "mas o que eles estao fazendo aqui?", perguntou em africaner para o dono da venda. Logo depois, nos olhou e traduziu a pergunta para o ingles.